Como a Biologia do Cérebro influencia sua Saúde Mental

E se o problema não for um “pensamento negativo”?

Via Saber
6 min readOct 29, 2020

Entre os temas mais importantes e marginalizados na sociedade, um que ganha destaque é saúde mental. Quando se trata desse assunto, são inúmeros os tabus existentes e basta mencioná-lo para surgir aquele silêncio desconfortável na sala. Mas poucas pessoas entendem o quão importante o assunto é, como o cérebro funciona ou se certas doenças realmente existem além do imaginário.

Há uma diferença entre ficar triste, nervoso, imaginativo, preocupado e ter um transtorno mental. Esse último é uma condição que afeta o cérebro e consequentemente influencia a maneira como as pessoas pensam sobre si e outros, veem o mundo, agem e se relacionam. O que as outras pessoas — que não têm tais doenças — geralmente veem são essas mudanças de pensamento, comportamento e relação, não necessariamente entendendo a causa delas, o que gera um pré-conceito e uma disseminação de imagens erradas relacionadas às doenças psíquicas.

O preconceito e a necessidade de validação dos transtornos mentais — como os preconceitos em geral — são devidos, principalmente, à falta de entendimento. A maioria das doenças relacionadas ao cérebro tem esse impedimento, afinal, como entender algo que não posso ver? É simples olhar para alguém que quebrou as pernas e dizer: “Essa pessoa não pode correr agora, sequer pode andar”, mas ao olhar para uma pessoa com depressão, por exemplo, não vemos algo fisicamente errado. Não conseguimos olhar dentro do cérebro de alguém e ver “Ah, esse neurotransmissor aqui não está funcionando, em!” ou “Essa pessoa não pode levantar porque o cérebro dela não está produzindo dopamina* o suficiente”.

Além disso, como alguns transtornos são causados por fatores biopsicossociais, não entendemos exatamente como eles se desenvolveram. Mas não é porque alguns fatores envolvem algo subjetivo e social que o transtorno — como o depressivo ou de ansiedade — deve ser relativizado ou negligenciado. Assim, torna-se difícil entender coisas que parecem tão abstratas e longe da realidade palpável do dia a dia.

Contudo, muitas doenças psiquiátricas são bem estabelecidas na medicina hoje em dia, e precisamos falar sobre elas porque estão entre nós e atingem uma parcela significativa das pessoas. A depressão é uma das três principais causas de incapacidade no mundo e a ansiedade é uma das condições mais prevalentes, que chegam a 10% da população (aproximadamente 780 milhões de pessoas). Ademais, alguns transtornos menos frequentes, como a esquizofrenia e o transtorno obsessivo compulsivo, afetam muito a qualidade de vida: 90% das pessoas com esquizofrenia não trabalham e 80% não se casam ou têm qualquer tipo de relacionamento amoroso [1].

Precisamos então falar sobre elas e saber que todas as doenças mentais afetam fisicamente o cérebro de alguma maneira. Focaremos em entender um pouco disso no transtorno depressivo, que afeta estimadamente 300 milhões de pessoas no mundo e é uma das condições prioritárias do Programa de Ação para Saúde Mental (mhGAP) da Organização Mundial da Saúde [2].

Atualmente a ciência entende como o transtorno funciona e as formas de tratamento mais eficazes, entretanto, as causas da depressão não são fundamentalmente entendidas. Não é só uma simples mistura de químicos no cérebro que crescem ou diminuem repentinamente. Há inúmeros fatores envolvidos, como genes herdados que podem deixar a pessoa mais vulnerável aos humores, medicamentos que afetam o equilíbrio bioquímico do cérebro, dificuldade de regulação dos hormônios pelo cérebro, e a influência psicossocial — como eventos estressantes ou traumáticos da vida -, que deixa ainda mais complexo entender como a interação desses fatores pode levar à doença mental. Mas vamos tentar entender uma pequena parte: os trabalhadores no nosso cérebro.

Temos três principais áreas do cérebro que são importantes no entendimento da depressão: a amígdala, associada à emoções como raiva, prazer, medo e tristeza, e que é ativada com memórias emocionalmente carregadas; o tálamo, que ajuda a ligar informações sensoriais a sensações agradáveis e desagradáveis; e o hipocampo, que está ligado a memórias de longo prazo e, em conjunto com a amígdala relaciona emoções à memórias.

Basicamente, temos essas três partes do cérebro trabalhando junto por meio de algumas células, entre elas os neurônios, recebendo, sintetizando e transmitindo vários componentes químicos que podemos chamar de mensageiros. Esse trabalho em conjunto é responsável por todo um equilíbrio, desde pensamentos à ações. Assim, quando há interferência em alguma parte ou há algum componente não fez o seu trabalho, esse equilíbrio é prejudicado e pode gerar diversas consequências. Vamos chamar esses químicos mensageiros — que são transmitidos de um neurônio a outro no nosso cérebro e corpo — de neurotransmissores.

Às vezes o cérebro não consegue produzir quantidades satisfatórias de alguns desses neurotransmissores, e é aí que alguns antidepressivos entram: fornecendo o necessário para levar a mensagem certa que fará o cérebro produzir certas sensações e emoções. Mas nem sempre o problema está só na quantidade dos mensageiros ou hormônios. Lembra do hipocampo? Aquela área que ajuda a relacionar memórias às emoções. Então, o hipocampo de algumas pessoas com depressão é menor: acredita-se que o hormônio do estresse pode influenciar a diminuição ou parar a produção de neurônios no hipocampo, diminuindo seu tamanho [3].

Mas como isso pode influenciar na doença? Vejamos, os antidepressivos aumentam os mensageiros químicos (como a dopamina e a serotonina) imediatamente, mas as pessoas não costumam melhorar assim que começam a tomá-los. Curioso. Pensamos então que o problema deve estar em outro lugar: o que pode acontecer é melhorar conforme os nervos começam a crescer e formar novas conexões para poder transmitir esses químicos que o remédio aumentou. Mas isso leva algumas semanas, o que explicaria a certa demora em sentir de fato uma mudança devida à ação do antidepressivo.

Estudos em animais mostraram que antidepressivos podem estimular o crescimento e aumentar as ramificações de células nervosas no hipocampo, o que parece ótimo: além de nos dar neurotransmissores como a serotonina (conhecida como hormônio do bem-estar), esses remédios podem ajudar a formar os caminhos para que os mensageiros possam passar e ir ao seu devido lugar de atuação [3]. Legal, né?

Sinapse: Transmissores passando de um neurônio para outro

Isso tudo é só um pedacinho do funcionamento do cérebro, e como podemos perceber, existem milhões de reações químicas e complexos nervosos que juntos contribuem para a formação do nosso humor, nossos pensamentos e visões de vida. Imagine agora se os juntarmos a outros termos da equação complexa da depressão e acrescentarmos mais equações de outras doenças? Fica bem difícil compreender. A ciência ainda está longe de entender tudo completamente, mas a cada dia chega um pouco mais perto.

Ao estudarmos um pouco como funciona nosso cérebro, visualizamos minimamente a atuação da depressão nele e a importância que os medicamentos psiquiátricos têm no tratamento da doença. Contudo, não podemos nos esquecer que o transtorno é causado por um conjunto de fatores e podemos criar um outro conjunto para tratá-lo. Os remédios funcionam de forma muito mais eficiente junto com a psicoterapia, e isso não só para depressão, mas para todos os transtornos mentais [1].

Ademais, a saúde mental está fortemente interligada com a saúde física, as duas estão de mão dadas e se afetam mutuamente. Logo, um estilo de vida saudável, com exercícios físicos, uma boa nutrição e respeito ao relógio biológico — dormir a quantidade de horas recomendada, por exemplo — é ótimo para ajudar no tratamento de doenças psíquicas [1,4].

Foi um longo caminho até aqui para os cientistas verem que há um universo de possibilidades na causa e no tratamento de doenças mentais. Agora é preciso mostrar para as pessoas que não se trata de algo do imaginário. Não é uma mudança de pensamento que vai tratar pessoas com depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo, entre outros. Precisa-se de empatia, conversas, acompanhamento médico e solidariedade para tratar de algo tão importante como a saúde de seres humanos.

*dopamina é um hormônio que, entre outras coisas, está relacionado à vontade de fazer algo.

Referências:

[1] Entrevista com o Professor Pesquisador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP adaptada em:

<https://www.facebook.com/ViaSaber/posts/717804668817261?notif_id=1602273658085735&notif_t=scheduled_post_published&ref=notif>

<https://www.instagram.com/p/CGlE2NuB5bw/?igshid=25i35sz7hw3d>

[2] Folha Informativa — Depressão (Organização Pan Americana de Saúde):

<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5635:folha-informativa-depressao&Itemid=1095#:~:text=Em%20todo%20o%20mundo%2C%20estima,a%20carga%20global%20de%20doen%C3%A7as.>

[3] What Causes Depression? — Harvard Health Publishing:

<https://www.health.harvard.edu/mind-and-mood/what-causes-depression>

[4] Entrevista com a pesquisadora doutora em psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — adaptada em:

<https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=710923196172075&id=221283401802726#_=_>

[5] Tecido Nervoso — e-Disciplinas USP:

<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4371413/mod_resource/content/1/TECIDO%20NERVOSO%20e%20resumo%20geral.pdf>

[6] Mind and Mood — Harvard Health Publishing:

<https://www.health.harvard.edu/topics/mind-and-mood>

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