As Réguas do Infinito

Via Saber
8 min readNov 18, 2020

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Como medir o que parece imensurável

Certo dia, um colega me disse: “o infinito é tudo, o tudo é o infinito”. Mais do que uma filosofia própria, foi uma objeção dita por quem lutava para digerir a existência de diferentes infinitos no mundo da matemática. Isso mesmo que você leu: diferentes tipos de infinitos. Não o julgo de modo algum, pois afinal, alguns matemáticos já ficaram clinicamente loucos durante suas tentativas de entender a complexidade do infinito. [1] Claro, embora tudo seja apenas coincidências infelizes, é inegável que tal jornada intelectual resguardava pesadelos e angústias para os valentes corações e as mentes mais bem preparadas. [2]

Felizmente, neste artigo, não precisamos correr tais riscos. Não prometo, porém, que será algo fácil de início. Espero poder ampliar suas crenças sobre a matemática a partir daqui. Iremos desvendar um pouco sobre o mistério do infinito e aprender que tipo de réguas existem para medirmos algo que, de início, aparenta ser imensurável.

“Se tudo o que existir for uma caixa com três sapatos, o infinito é mais do que tudo?”

O que é o infinito?

Não sabemos muito sobre. Para ser honesto, ainda temos muitas perguntas para responder. Não sabemos nem se um dia será possível respondê-las [3]. Mas se não conseguimos entender completamente o infinito, como podemos sequer estudá-lo de forma alguma? A resposta é: como qualquer outra coisa na vida. A gente começa com um palpite, desenvolvemos algumas regras para não nos perdemos no raciocínio (algo como uma impressão digital de nossa teoria), e vemos até onde conseguimos chegar com o que já temos.

Para facilitar nossos raciocínios, irei pensar no infinito apenas em termos de coleções de objetos, como três sapatos, cinco caixas e por aí vai. E para nosso primeiro palpite eu digo que o infinito não é finito.

Pode parecer óbvio, mas em prática, por exemplo, isto significa que se começarmos a retirar um por um os sapatos de dentro uma caixa, e esta caixa eventualmente ficar vazia, significa que desde o início havia apenas uma quantidade finita de sapatos dentro dela. Contar as coisas dizendo que há 3 disso ou 20 daquilo é um ótimo artifício para confirmar que algo é de fato finito. Porém, será que contar as coisas também serve para identificarmos algo de natureza infinita? Testemos com o seguinte exercício mental.

Se uma coleção é infinita, nunca terminamos de contar. Porém, se ainda não terminamos de contar, como podemos saber que nunca iremos terminar de contar? Pode ser que estejamos contando algo absurdamente grande, como a quantidade de átomos do Universo visível, e eventualmente iremos terminar. Ou, talvez, estejamos apenas contando quantos números inteiros existem quando começamos a partir do zero (0, 1, 2, 3….), e nunca iremos saber se um dia terminaremos ou não. Então apenas o artifício de contar um por um é, de certa forma, apostar num jogo de azar: talvez dê certo e apenas demore muito tempo, ou talvez você perca a sua vida inteira tentando!

Se queremos medir o infinito de uma forma que não pareça um grande jogo do azar, precisamos ser mais espertos com os nossos raciocínios.

Cardinalidade

Se contar não funciona, o que sobra afinal? Vejamos: pegue as suas mãos e conecte a ponto dos seus dedos de uma a outra. Supondo que você não saiba quantos dedos possui em cada mão, consegue pelo menos dizer que ambas as mãos tem a mesma quantidade de dedos? Imagino que sim, pois todos os dedos se conectaram. Com menos esforço, sabemos pelo menos algo sobre a quantidade de dedos nas nossas mãos sem sequer ter contado um a um todos eles, isto é, de que ambas as mãos tem a mesma quantidade de dedos. Se tivéssemos duas caixas de sapatos e tentássemos fazer pares com os sapatos de uma com a outra, caso sobra-se pelo menos um sapato em alguma delas, saberíamos que uma caixa tem mais sapatos do que a outra.

Esse artifício se chama cardinalidade [4]. Antes, quando contamos, descobrimos a quantidade de coisas de algo. Agora, quando comparamos, isto é, quando descobrimos a cardinalidade desta coisa, temos uma forma abstrata de medir seu tamanho. Se pegarmos os átomos do universo visível e casarmos um a um com os números (0, 1, 2, 3, …), ao final, sobrará infinitos números solteirões. E, de fato, qualquer coleção finita será impossível de casar com uma coleção infinita, pois sempre sobrará solteirões. Mesmo sem saber quantos tipos de infinitos podem estar passeando no mundo da matemática, descobrimos agora uma espécie de régua comum a todos: o pareamento / a cardinalidade.

Se conseguimos distinguir uma coleção finita das infinitas apenas casando seus objetos, como isso nos ajuda a medir as coisas propriamente infinitas? É aqui que entramos na zona contra-intuitiva da matemática, onde inclusive meu querido colega relutou contra às ideias que irei apresentar, proclamando sua máxima “o infinito é tudo, o tudo é infinito”.

Medindo o infinito

A melhor forma é começarmos com exemplos.

Considere a seguinte coleção de números, mais conhecida como a dos números naturais: N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, …}. Irei mostrar que, se separarmos os números pares dos ímpares em duas distintas coleções P = {0, 2, 4, 6, …} e I = {1, 3, 5, 7, …}, essas duas coleções terão a mesma cardinalidade de infinito da dos números naturais. Isto é, particionando o coleção em dois, o tamanho do seu infinito original não irá diminuir.

Parece absurdo, não? Pois afinal, estou pegando algo e dividindo em dois, então como algo pode manter o seu tamanho depois de ter sido dividido em dois? Onde já se viu uma barra de chocolate continuar a mesma depois de eu ter comido metade dela?!?! Bom… eu avisei que o infinito é contra-intuitivo, e irei provar para você este fato.

Vejamos. Escolhendo a coleção de pares P (o mesmo exemplo funciona para a coleção de ímpares), irei casar número por número com a coleção dos naturais N. Como? Da seguinte maneira:

Perceba que, todo número natural em N, está sendo casado com o seu dobro. Isto é, se eu pegar um cara qualquer de N e tentar falar que ele está solteiro, irei me contradizer porque ele está casado com o seu dobro. Exemplo: se eu pegar o número 3 de N, ele está pareado com o número 6 de P. E, quanto ao sentido inverso do argumento, todo número em P está com alguém de N, pois como o número é par, significa que ele é divisível por 2. Exemplo: 12 de P está pareado com o 6 de N. Portanto, todo número está casado com alguém, e por isso esses conjuntos têm o mesmo tamanho.

O que estamos fazendo aqui é, contraditoriamente, construindo e descobrindo um pouco sobre o infinito. Desenvolvendo dentro de nós uma crença objetiva e, de certa forma, irrefutável sobre o infinito. Sem regras, sem mistérios, apenas com as nossas capacidades intelectuais.

Se tudo estiver bem, vamos para o próximo exemplo.

Considere a coleção Z = {…, -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, …}, similar com a dos números naturais, porém incluindo os negativos. Em outras palavras, existem infinitos números dentro dos inteiros Z que não estão nos naturais N. Mostremos que Z tem a mesma cardinalidade (o mesmo tamanho de infinito) de N. Primeiro, ordenamos um pouco a coleção do Z, pois ela continua infinitamente tanto para a esquerda quanto para a direita. Podemos fazer isso da seguinte maneira:

Z = {0, 1, -1, 2, -2, 3, -3, …}. Apenas mudamos um pouco a ordem, porém perceba que o conjunto continua o mesmo!

Agora, casemos os solteirões da parada.

Veja que o casamento neste caso é menos óbvio. Se eu tenho um número par de N, ele está casando com a metade negativa dele. No caso do zero, a metade é o próprio zero (e seu negativo, também). E se e o número de N é ímpar, ele está mapeando para algo muito parecido como o que fizemos no exemplo anterior: de I ímpares para N naturais, pois os únicos números que sobraram solteiros em Z foram os {1, 2, 3, 4, …}, já que os pares pegaram todos os negativos dos inteiros. E neste caso, a gente já sabe que a cardinalidade é a mesma!

Uff, quanta coisa já vimos, não? O infinito dos números pares é o mesmo que o infinito dos números ímpares que é o mesmo infinito dos números naturais que é o mesmo infinito dos números inteiros! Este infinito é tão importante para o mercado da matemática que há até um nome para ele, conhecido como Aleph 0 (lê-se a-lê-fi zero). [5]

Fica aqui uma pergunta: será que existe algum infinito que está acima do infinito que encontramos até o momento? E o que quero dizer com o “acima”? Eu digo em termos de tamanho, de cardinalidade, de que talvez exista uma espécie de hierarquia de infinitos que diferem pelos seus tamanhos. É como dizer: “esse infinito é maior do que o outro, pois quando casamos, sobra infinitos”. A resposta que te dou é: sim, existe. E não só existe, mas como existem infinitos infinitos maiores do que outros infinitos! Infelizmente, a prova deste fato é bastante complexa e foge do escopo do artigo, pois envolve muitos fundamentos em matemática avançada.

Um caso em particular, apenas para dar um gosto, por exemplo, ocorre quando consideramos a coleção de números reais R, conhecida pelos números (-2, 3, ½, π, …), e observamos que seu tamanho é tão grande, mas tão grande, que faz a infinitude dos naturais N parecer … um nada. Um fato tanto quanto bizarro, que abre infinitas perguntas e possibilidades para nossas ingênuas mentes. [6]

Considerações finais

Torço para que você que chegou até o final deste texto tenha adquirido um sentimento admirativo e intrigante pelas ideias da Matemática. Desenvolvemos dentro de nós noções sobre o infinito que até então pareciam difíceis de serem verdades. Expandimos nossas crenças individuais de forma objetiva a ponto de colocar os diferentes infinitos sob réguas que cabem na palma da nossa mão. No final, de forma surpreendente, os resultados destes exercícios desafiaram nossa intuição e experiências humanas, pois afinal, não estamos acostumados a trabalhar com ideias tão grandes (risos). E é nisso que a Matemática é especialista: desafiar nossas intuições humanas, botar em cheque o que acreditamos sobre um problema, entregar um papel e caneta na nossa mão e dizer: se você está confiante de si mesmo e certo sobre uma coisa, então prove-a! Tarefa esta que exige ímpeto e paixão. E de fato provamos.

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